No dia 28 de abril, o espaço cultural URB!, em São Paulo, foi palco das artes, recebendo o primeiro Rato Fest. O evento, organizado e promovido de forma independente, proporcionou ao público uma experiência envolvendo música, artes visuais e brechós.
A tarde ensolarada de domingo oferecia um breve e bonito passeio do metrô até a URB!, no número 401 da rua Rui Barbosa. Nas proximidades, ainda pela rua, era possível ouvir o som das bandas, como um convite misterioso e acidental. Alguns desavisados perguntavam sobre o evento, interessados pelo que ouviam. E o que ouviam, abrindo as apresentações do festival, era o som potente da Kabeça Cheia.
Kabeça Cheia
O carismático trio — composto por José Victor Barroso (voz e guitarra), João Cruz (baixo) e Lucas Troiano (bateria), que vestiam, respectivamente, as camisas dos clubes de futebol São Paulo, Santos e Palmeiras — deu início a seu show com pontualidade, encontrando um público ainda esparso e consideravelmente tímido, distante do palco.
Assim, a banda teve o desafio de aquecer os presentes e envolvê-los. E, tanto a musicalidade, quanto a presença de palco do grupo, provaram-se suficientes para isso. A cada faixa, a Kabeça Cheia ia conquistando o público com seu jazz-rock psicodélico, fazendo-o sair de trás das colunas, sair das sombras, chegar mais perto.
Já perto do final da apresentação, muitos dos presentes mostraram conhecer as letras da banda, cantando junto e dançando. Então, a faixa final, Sentimentos Selvagens, cumpriu seu papel como ponto alto da performance: José Victor chamou pessoas do público para cantar trechos do refrão, criando um momento divertido e de conexão.
Com o encerramento marcante, a Kabeça Cheia animou a todos, exibindo a força do que pode fazer a partir de suas referências. A banda, que até o momento tem apenas duas demos lançadas nas plataformas, sem dúvida criou muito interesse em relação ao que mais sairá de sua cabeça.
Fragoria
Depois, houve uma mudança de clima e intensidade com o atraente experimentalismo da banda Fragoria. Kaique França (voz e guitarra), Caio Prandini (guitarra), Vinicius Ribeiro (baixo e voz) e Thiago Turquetti (bateria) subiram ao palco timidamente, falando pouco, e começaram seu show de forma suave, contrastando a voz delicada de Kaique com letras agudas, que refletem sobre o social e o individual.
O som atmosférico e dissonante da banda, que abraça gêneros como pós-punk, psicodelia, shoegaze e indie-rock, foi aos poucos atraindo o público de volta para perto do palco. E suas viagens experimentais criaram um estado de torpor contemplativo. Assistir à Fragoria é como ler um livro difícil. Exige atenção, entrega e cuidado. E, ainda que o nervosismo tenha feito Kaique desafinar durante trechos das faixas iniciais, isso em quase nada prejudicou a poderosa ambiência criada pelo show.
Dessa forma, uma viagem sonora e discursiva foi se construindo, sustentada pelo virtuosismo competente de cada integrante da Fragoria, através de canções como Pequeno Amor e Caroline, para explodir em Heróis dos Porões do Mundo (Uni-vos!), e, por fim, desaguar na melancolia agridoce de Pós-Expediente.
Aos pedidos de bis, Vinicius disse: “a gente literalmente não tem mais músicas pra tocar por enquanto”, deixando no ar a promessa de novas canções por vir. Em seguida, a banda se juntou no palco, ainda tímida, para tirar uma foto final.
Luare
Com a vinda da Luare, aconteceu uma nova e brusca mudança de intensidade. Laura Sousa (voz), Gabriel Moura (bateria), Gabriel Oliveira (baixo e, por vezes, guitarra) e Weslley Leão (guitarra) produziram versões enérgicas das canções do álbum Eu Sei Que Você Sabe Exatamente Onde Me Encontrar (2022).
Ao vivo, o shoegaze brilhante e suave das músicas de Laura ganhou dimensão vigorosa. Alguns poucos equívocos e contratempos entre canções foram superados pela presença forte de Laura, sua habilidade com o público e pela sinceridade cativante de suas composições.
A presença de Gabriel Oliveira no baixo contribuiu para uma roupagem nova de arranjos em faixas marcadas pelo instrumento, como a intensa Eu Prefiro A Neve Quando Estou Com Saudades. E, com a contribuição de cada membro, o shoegaze provou-se mais uma vez capaz de atingir um peso singular, ainda que baseado na delicadeza do sentimentalismo introspectivo.
Muito aplaudida, a banda posou para a foto final e se despediu do público.
perfidia
A última apresentação do festival ficou a cargo da banda perfidia (diz-se “perfídia”, ainda que a grafia usada pela banda não tenha acento). O quarteto — Lucca Cerasi (voz e guitarra), Weslley Leão (baixo e voz), Caio Isidoro (bateria) e Gabriel Rossi (guitarra) —, comentado pelos corredores do fest como “a nova Lupe De Lupe”, rapidamente deixou claro seu poder de atração ao trazer, sem esforço, o público para bem perto do palco.
Muito cuidadosos na passagem de som, a banda fez questão de ajustar o volume da voz e dos instrumentos para entregar exatamente o que pretendiam. Iniciaram, então, o show, e logo seu shoegaze violento, de distorções ácidas e muitos gritos, tomou o ambiente.
As músicas do álbum o que leva as pessoas a fazerem o que fazem (2023), somadas a inéditas e um cover, elevaram a energia do Rato Fest ao seu ápice. E o profissionalismo vocal e instrumental da perfidia não deixou dúvidas quanto à sua capacidade de projeção na cena alternativa.
Assim, conseguindo provocar um mosh, a banda encerrou a primeira edição do Rato Fest da melhor forma possível, prometendo lançamento de um novo EP ainda em maio.
Manifestações artísticas, ambientes e estrutura
Entre e durante os shows, o público também pôde ver e comprar artes dos expositores Bea Desenha, Luisa Leão e Mocadinho, e Baby Naav, que iam de prints e pulseiras até quadros.
O mesmo ambiente, no segundo andar da URB!, também era dividido com os brechós Mãe da Lua e Coisa Velha Store, que ofereciam roupas e itens vintage, como câmeras analógicas e leitores de CD portáteis.
Em termos de organização, uso dos espaços e sistema de compra de comidas e bebidas, o Rato Fest se mostrou extremamente disciplinado já em sua primeira edição. Acolhedor e convidativo, ele foi a prova de que não são necessárias megaestruturas para oferecer uma experiência artística memorável e digna. E o ótimo desempenho do festival faz pensar, é claro, em como e quando será sua próxima edição. Até lá, os canos e os ratos de São Paulo aguardam.